O Primeiro Livro de Samuel – Primeira parte
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Nome
Nossos livros de I e II Samuel, no cânon hebraico, aparecem como um único volume. Isso é provado pela nota marginal, ao lado de I Sam. 28.24, que diz que ali se encontra “a metade do livro”. Naturalmente essa nota posta à margem não aparece em nossa versão portuguesa. 

O nome do livro deriva-se de uma dos três personagens principais da obra, o profeta Samuel. Ele aparece, com proeminência, nos primeiros quinze capítulos de I Samuel. E, mesmo depois que a história passa a gravitar em torno de Saul e Davi, Samuel continua aparecendo como um dos três personagens principais do relato, até a sua morte (ver I Sam. 25.1). De fato, Samuel continua a desempenhar importante papel no livro de I Samuel. 

O trecho de I Sam. 28.20 é a última menção a esse grande profeta de Deus. Interessante é observar que o nome de Samuel nunca aparece no livro de II Samuel. Isso se repete em ambos os livros de Reis. Mas o seu nome reaparece em I Crô. 6.28; 9.22; 11.3; 26.28; 29.29; II Crô. 35.18; Sal. 99.6 e Jer. 15.1 (no restante do Antigo Testamento); e também em Atos 3.24; 13.20 e Heb. 11.32 (no Novo Testamento). Seu nome, figura por um total de 136 vezes em toda a Bíblia, das quais 125 vezes em I Samuel. Esse nome significa “ouvido por Deus”.

Samuel era levita, filho de Elcana e Ana. Nasceu em Ramataim-Zofim, no território montanhoso de Efraim. Foi o último dos juizes e o primeiro dos profetas (depois de Moisés), uma categoria de servos de Deus que, quanto ao Antigo Testamento, prosseguiu até Malaquias, e, na verdade, até João Batista, o precursor do Senhor Jesus.

Caracterização Geral

O cânon hebreu tinha um único livro de Samuel, que nós conhecemos como I e II Samuel. Foi na Septuaginta que, pela primeira vez, apareceu a divisão em dois livros, quando eles foram chamados “Livros dos Reinos”. Foi na mesma ocasião que os livros que chamamos de I e II Reis apareceram como “Livros dos Reinos III e IV”, visto que o conteúdo desses dois últimos continha o relato iniciado em I e II Samuel.

Jerônimo, por sua vez, afixou o título “Livros dos Reis” (no latim, Libri Regum) a esses novos quatro livros. Foi também ele quem modificou o título “Reinos” para “Reis”. E, finalmente, com o tempo, a Vulgata Latina conferiu o nome “Samuel”, aos dois primeiros desses quatro livros.

Os livros de Samuel, pois, historiam a transição do povo de Israel da teocracia para a monarquia. A teocracia (ver a respeito no Dicionário), que indica o governo de Deus sobre o povo de Israel, mediante homens divinamente escolhidos, como Moisés, Josué e os juizes, foi iniciada no livro de Êxodo; instaurada na Terra Prometida, quando da conquista sob a liderança de Josué, e teve continuidade até os dias do próprio Samuel, que atuava como o agente escolhido por Deus para representar a teocracia.

Autoria

Os próprios livros históricos da Bíblia nos fornecem algumas indicações sobre a autoria de I e II Samuel. Lê-se em I Sam. 10.25: “Declarou Samuel ao povo o direito do reino, escreveu-o num livro, e o pôs perante o Senhor". E também somos informados em I Crô. 29.29: “Os atos, pois, do rei Davi, assim os primeiros como os últimos, eis que estão escritos nas crônicas, registrados por Samuel, o vidente, nas crônicas do profeta Natã e nas crônicas de Gade, o vidente”. 

Esses trechos bíblicos dão-nos a entender que, pelo menos em parte, Samuel é um dos autores do âmago da narrativa de I Samuel e também que Natã e Gade, que viveram na geração seguinte à de Samuel, tiveram participação nessa obra. Que outros autores dos livros de Samuel (I e II) possam ter participado já não passa de especulação, pois a Bíblia faz total silêncio a respeito. A autoria dos livros de Samuel, pelo menos em parte, é confirmada pelo Talmude, que diz que esse profeta escreveu os livros de Samuel. 

É claro que Samuel não pode ter sido o autor da obra inteira (I e II Samuel, segundo o nosso cânon), porque ele morreu quando Saul ainda era rei; assim Samuel não pode ter acompanhado nem mesmo o começo do reinado de Davi, com cujo governo se ocupa o livro de II Samuel, embora possa ter sido autor do âmago inicial de I Samuel.

Data

A questão da data dos livros de I e II Samuel depende, em muito, da questão de sua autoria. Assim, se Samuel, Natã e Gade foram os autores essenciais, então esses dois livros foram escritos durante os dias do reinado de Davi, ou imediatamente depois. Todavia, os estudiosos pensam que certas porções da obra, particularizando II Sam. 9—20, teriam sido escritas no século X A.C., ao passo que outras porções são atribuídas por eles a períodos posteriores, que se estenderiam até depois do exílio babilônico.

 Os eruditos conservadores fazem variar a data dos livros de Samuel desde 970 A.C. (pouco depois da época de Davi) até 722
A.C. (época em que a cidade de Samaria foi destruída pelos assírios e começou o exílio de Israel, nação do norte).

Cronologia

A. Samuel (1.1—7.17)
1.1. Houve um homem.

O minucioso escritor hebreu fornece-nos materiais biográficos relacionados aos pais de Samuel. Primeiramente aparece em cena o pai de Samuel, Elcana. E então surge Ana, por meio de quem o poder miraculoso de Deus haveria de operar e produzir Samuel, o instrumento especial de Deus para aquele período da história de Israel.

1.2. Tinha ele duas mulheres.

É um anacronismo ridículo dizer,  que essa poligamia ilustra a iniqüidade da época e, em seguida, desculpar Elcana por sua esposa extra, com base na esterilidade de Ana. O Antigo Testamento inteiro prova como esse juízo moral é ridículo.

Os fatores limitadores da poligamia eram mais econômicos que morais. Um rei, que dispunha de muito dinheiro e autoridade, também tinha grande número de esposas e concubinas. Um homem mais pobre contentava-se com apenas duas mulheres. E um homem realmente pobre tinha uma única esposa. É verdade que, para um israelita, era um grande problema não ter filhos, pois complicaria a questão da herança das terras, que passavam de pai para filho. Mas a bigamia ultrapassava muito a gravidade desse problema. Nos salmos e nos livros dos profetas, começa a figurar claramente nas Escrituras a noção da imortalidade pessoal. Antes disso, uma espécie de imortalidade era conseguida através da continuação da linhagem física; e um israelita temia “morrer'’, se sua linhagem física fosse descontinuada, devido à ausência de filhos.

Seja como for, constituía grande desastre e indignidade uma mulher não ter filhos, não tomando parte na continuação do nome e da herança da família. Quanto a essa conexão, ver Gên. 16.2. Era comum que um homem continuasse vicariamente a sua linhagem por meio de outra mulher, embora os filhos resultantes dessa união não fossem biologicamente filhos da primeira.

Ana significa “graça”, um nome que se tornou comum em todo o mundo. Por sua vez, Penina significa “pérola” ou “coral”. 0 oitavo versículo deste capítulo talvez sugira que Penina tivesse dez filhos. Nesse caso, a sorte de Ana era especialmente amarga. Ali estava ela, negligenciada por Deus, que a tornara estéril, ao passo que dera à sua rival todos aqueles filhos!

1.5. A Ana, porém, dava porção dupla.

Ana não ficava fora das festividades. Mas nessas ocasiões ela era uma figura de causar dó, sem filhos, ao passo que Penina obtinha toda a glória. Ademais, Penina assegurava que Ana estivesse em situação periclitante, vexando-a com observações cortantes por não ter filhos (vs. 6). E Ana permanecia amargurada diante de tudo que lhe acontecia (vs. 10). Em seu desespero, pois, pediu a Deus um filho que revertesse o seu opróbrio. Sem um filho, ela não daria um herdeiro a Elcana, e a herança da família passaria para os filhos de Penina. Outrossim, aquele tipo de imortalidade que os hebreus da época tanto cobiçavam, ou seja, a continuação através dos filhos, não se tornaria uma realidade. Acresça-se a isso a questão do julgamento de Deus, que era considerado a causa real da esterilidade de uma mulher.

1.6. A sua rival.



Neste versículo, Penina é considerada “adversária" de Ana. Ana era amada por Elcana, mas não tinha filhos. Penina dispunha de menos amor da parte do marido, mas possuía filhos. E, na mente de Ana, a segunda posição era obviamente superior à primeira. Havia uma rivalidade que coisa alguma poderia terminar; mas, pelo menos, um filho de Ana remediaria a situação.

 Penina provocava Ana, salientando o fato de que Yahweh deveria ter alguma coisa contra Ana, enquanto favorecia Penina. Esta, pois, irritava propositadamente Ana, mantendo- a sob contínua tensão. As bofetadas eram administradas diariamente; e Ana ficava cada vez mais desesperada. Cf. o caso de Lia e Raquel (ver Gên. 30.1).
O Senhor lhe havia cerrado a madre.

A teologia dos hebreus era deficiente quanto a causas secundárias. Todas as coisas, boas ou más, eram atribuídas a uma única causa, Deus. Por conseguinte, era natural que a esterilidade fosse considerada um juízo divino, devido a algum pecado oculto ou outra razão desconhecida. A fertilidade, entretanto, era considerada uma bênção dada diretamente a uma mulher, indicando que ela era aprovada por Deus. Os filhos eram muito cobiçados, não meramente para prover trabalhadores extras no campo, mas também porque cada um deles era um presente dado por Deus.

 Eles eram tidos como herança do Senhor (Sal. 127.3). Esse tipo de atitude alerta-nos para a razão pela qual Ana se sentia tão desanimada quanto à questão de sua esterilidade, dispondo-se a envidar esforços heróicos para obter o favor de Yahweh, contanto que lhe fosse dado ao menos um filho especial. Naturalmente, o pedido de Ana lhe foi atendido; mas ela não sabia quão especial seria aquele filho. Ele se tornou uma chave importante na história de Israel, capaz de estabelecer tendências para toda a nação.

1.10. Com amargura de alma, orou ao Senhor.

Perseguida por Penina e esmagada em seu próprio coração, por causa de sua esterilidade, Ana estava à beira da histeria e, em um ataque de choro, misturava suas orações com sua imensa tristeza, implorando a Yahweh que revertesse a triste condição de esposa sem filhos. Os hebreus não dispunham ainda de conhecimentos científicos e métodos capazes de entender condições como a esterilidade; assim sendo, Deus era o único tribunal de apelos em caso de problemas ginecológicos.

1.11. E fez um voto.

Há um artigo detalhado no Dicionário, denominado Voto. Parte do culto religioso dos hebreus consistia em fazer votos e promessas, quando almejavam alguma dádiva ou bênção especial da parte de Yahweh. E esses votos, como todos os aspectos da vida dos hebreus, eram governados por um conjunto de preceitos. O artigo mencionado é tão completo e detalhado que não tenho aqui espaço para repetir o material.

O voto feito por Ana teve um cunho espiritual. Ela prometeu a Yahweh que, se lhe fosse dado um filho, ela o dedicaria ao serviço do tabernáculo. E por esse motivo Samuel foi criado no tabernáculo, tendo-se envolvido no culto ao Senhor durante toda a vida. Naturalmente, aquele foi um período de preparação para sua missão como juiz e profeta do Senhor.

E sobre a sua cabeça não passará navalha.

Não há duvida de que isso significa que Samuel levaria a vida especialmente dedicada de nazireu. Em sua completa dedicação às realidades espirituais, um nazireu precisava abster-se de vinho e de qualquer tipo de contaminação cerimonial, e jamais podia cortar os cabelos. A maior parte dos votos de nazireado perdurava por certo período de tempo; mas Samuel deveria levar a vida inteira como nazireu. Samuel, descendente de Levi, era um levita; mas além disso, teria de cumprir um voto e uma missão especial.
Ana, na condição de mulher casada, não podia tomar um voto sem o consentimento de seu marido. Assim sendo, podemos supor que a questão já tivesse sido discutida com ele, e que ele houvesse aprovado o voto. Ver Núm. 30.8.


1. Seu nascimento (1.1-28)
1.20. Ela concebeu e, passado o devido tempo, teve um filho.

O menino foi chamado “Samuel” por ter sido pedido da parte do Senhor, que é o significado dado pelo autor sagrado ao apelativo.   Hillerus nos fornece o derivativo, Saul-mul-el, ou seja, “pedido diante de Deus” ou “pedido aos olhos de Deus”, visto que o pedido e o voto tinham sido feitos no tabernáculo (Onomastic. Sacr. partes 4I8, 419 e 487). Gesênio afirmou que Samuel significa “o nome de Deus” e, sem dúvida, isso está certo. Obter o outro derivativo, com base no nome próprio Saul, é uma maneira de fazer o nome corresponder às circunstâncias do nascimento, ou seja, a petição e o voto feitos por Ana. Em outras palavras, o autor recorreu a uma licença poética ao dar sua interpretação ao significado do nome; mas Gesênio sem dúvida se mostrou correto quanto à derivação verdadeira.

1.21. Subiu Elcana.

Esse “sacrifício anual" pode significar a páscoa ou a festa dos Tabernáculos, festividades que requeriam a presença dos varões de Israel. Muitos homens, no entanto, levavam os familiares a essas festividades de sacrifícios. A festa dos Tabernáculos era uma ocasião em que os homens se dirigiam ao lugar sagrado para agradecer pela colheita abundante que tinha sido feita. Eles iam para expressar gratidão e alegria. Ver Deut. 16.10-15. Elcana também tinha feito um voto, e alguns eruditos pensam que, em sua essência, esse voto foi idêntico ao de Ana, mas o texto nada nos informa quanto a isso. Cf. o vs. 3 quanto às festas de sacrifício anuais.

1.22. Ana, porém, não subiu.

Não era uma boa ocasião para Ana ir a Silo. Mais tarde, contudo, ela foi forçada a fazê-lo, por causa de seu voto, mas naquele momento Samuel precisava dela mais do que o tabernáculo. Mais tarde, contudo, ela subiria e simplesmente entregaria Samuel aos cuidados de Eli, e ali o menino seria criado para tornar-se um juiz e profeta especial de Deus. Ana ainda dispunha de poucos meses preciosos para desfrutar da presença do filho. O voto que ela havia feito era difícil de cumprir. Nesse cumprimento, grande foi o sacrifício pessoal de Ana. Samuel precisava ser primeiramente desmamado, para que o voto fosse cumprido. Este versículo é comovente. Poucos meses agora restavam para que mãe e filho continuassem juntos.

 Depois disso, Yahweh tornar-se-ia o companheiro especial de Samuel. Naturalmente, Ana tinha os direitos de uma visitante, mas essas visitas seriam bastante espaçadas. Entrementes, Ana ficaria desolada; mas nisso ela estava prestando grande serviço ao povo de Israel. Samuel foi diferente desde o começo, e foi diferente até o fim. Ele foi um filho especial, um homem especial, um formador da história.

O Desmame.

Em Israel, o desmame demorava bastante. II Macabeus 7.27 parece indicar que 3 anos era o tempo normal para isso. Os persas costumavam desmamar os meninos aos 2 anos, e as meninas aos 3. Mas logo chegaria o tempo do desmame. Samuel seria deixado para sempre no tabernáculo, para ser criado pelo sumo sacerdote e seus auxiliares.

Jarchi diz que o desmame de Samuel ocorreu ao fim de vinte e dois meses, exatamente conforme determinavam os persas. Mas Kimchi e Ben Meleque afirmam que isso aconteceu aos vinte e quatro meses. Em Israel, porém, o costume eram mesmo três anos completos.

2. O Cântico de Ana, mãe de Samuel (2.1-10)

 “Este é um dos mais antigos e mais comoventes poemas do Antigo Testamento. Tão messiânico é o texto em seu caráter que Maria, mãe de Jesus, incorporou-o em seu próprio cântico de triunfo, o Magnificat, em que louvou a Deus por tê-la escolhido para ser a mãe humana de Jesus, o Messias (ver Luc.1.46-55)” (Eugene H. Merrill, in loc.).
O Cântico de Ana é um salmo de louvor à providência de Deus, similar a várias composições do livro de Salmos. Esse cântico celebra a reversão do dilema humano, transformando-o em uma súbita e inesperada vitória.

“Esses verazes e belos pensamentos do Espírito do Senhor, primeiramente implantados no coração de Ana, e em seguida trazidos a seus lábios, tornaram-se um dos mais belos cânticos do povo de Israel, e tem sido transmitido de pai para filho, de geração em geração. Essas foram palavras proferidas por Ana, mãe do menino-profeta, que ela disse na quietude de sua própria casa, em Ramá dos Vigilantes” (Ellicott, in loc).

2.1. Então orou Ana.

Temos aqui uma oração de ação de graças e louvor, um salmo de louvor. Cf. Sal. 72.20 e Hab. 3.1. A oração consiste, em sua maior parte, em pedir e receber, mas esses outros dois elementos — agradecimento e louvor — também desempenham seu devido papel. Ver no Dicionário o artigo intitulado Oração.

O meu coração se regozija. Embora Ana estivesse muito triste por haver deixado o pequeno Samuel no tabernáculo, tendo ele apenas cerca de 3 anos de idade na ocasião, contudo, ao cumprir a vontade de Deus, de uma maneira especial, Ana sentia intensa alegria. Assim sucedeu porque houve grandes e boas conseqüências no cumprimento da vontade divina. A verdadeira espiritualidade sempre tem considerações objetivas, e não somente considerações que afetam a vida pessoal de uma pessoa.

Fonte: Champlin

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